24/05/2015

A última carta

Enquanto lê, escute:



Coloquei os poemas encharcados no varal e deixei que o sol os secasse. As lágrimas mancharam suas letras, misturaram tudo de novo nas entrelinhas, entre os intercostais, e trouxeram cheiro de saudade, assim como a chuva traz o cheiro de terra molhada. Cabia a mim ver cada folha encolhendo no calor, porque era o máximo que podia fazer: não tive coragem de atear fogo nos papéis, mas não me permiti aquecer-me por dentro depois que você se foi. Tive medo que a temperatura de novas memórias fosse nociva às nossas antigas. Então eu vi ali cada papel ficando mais e mais amassado. Nenhuma folha volta ao normal depois de mergulhada em água. 

Eram todas feitas  de um azul de caneta espalhado, manchado, como o rímel que me escorreu nas bochechas no ônibus, no caminho, nos lugares em que não me encontraria com algum conhecido. Sempre esteve tudo bem para quem me conhecia. Sempre foram sorrisos brancos e fotos com bons ângulos. O mundo ao qual eu pertencia nunca soube que o que me pertencia me trazia menos sangue às veias e menos nutrientes ao sangue. E nunca souberam que eu também já fui seu como aqueles papéis enrugados hoje são meus, longe ali, sofrendo com o frio do vento, se aquecendo ao sol, sem que eu consiga me mover para tocá-los. E você seco. E você em graus negativos.

Então eu respirei fundo algumas vezes, como se o oxigênio fosse o amor de que eu precisava. Amor de quem? E me deitei no granito, amando a sensação inversa da que só meu cobertor me traz. Amando o fato de algo tentar tirar de mim meus 36°C que te mantinham intacto: não havia frio em mim que te congelasse ou calor suficiente que te queimasse. E o meu meio termo permitindo que eu me lembrasse dos dedos e pernas entrelaçados. Do seu sorriso ao me ver abrir a porta.

O céu azul claro de maio acima de mim e nas memórias do nosso casamento. Teríamos sido felizes, não fossem o girar do mundo onde vivemos e a primavera e o verão aos quais não conseguimos suportar. De repente. De repente caminhar contra a rotação e suportar as mudanças do clima tornaram-se um fardo para você, quando fui eu quem carreguei a sua cruz por muito tempo. E, para mim, o peso de ter que desistir ainda com razões para lutar. 

Agora, o chão duro em contato com a minha pele branca, sem causar contrastes nem dor. E aí, uma vida inteira pela frente. Enchi meus pulmões pela última vez, olhei para as folhas já secas no varal, com as letras borradas. Você não terá motivos para se lembrar de mim depois que eu expirar o último ar que me preencheu, exceto por esta carta. Concedo-lhe o resto dos dias que ainda tinha para viver, as memórias de todos os lugares que não cheguei a conhecer, as primeiras palavras dos filhos que não tivemos. E, então, meu diafragma sobe, e eu procuro te manter por perto até o coração perder toda a força que teve para brigar por nós dois, mas nunca por mim mesma.