13/12/2013

Unknown 99

Enquanto lê, escute:

Creio que não fomos devidamente apresentados. Quando você me conheceu naquela manhã cheia de ressalga fluindo junto ao vento, só ficou sabendo daquilo que de melhor eu tinha para lhe oferecer. Eu sei que você viu que eu era daquelas que gostava de abraços o tempo inteiro. Também sei que, por mais estranho que soasse um homem formado como você gostasse desse meu jeito, você o amou. E você viu que eu não conseguia parar de sorrir enquanto conversava. Percebeu que eu era atenciosa, que eu fazia as pessoas rirem de vez em quando e, que apesar de ser extremamente observadora, não deixava de dar minha opinião, às vezes errada, no momento certo.

Mas, como já disse, não fomos devidamente apresentados. A vida é injusta e os nossos sentimentos mais ainda injustos com a nossa razão. Se fôssemos apresentados de forma completa, você conheceria uma parte de mim que os sorrisos não mostram, você veria meus defeitos estampados na sua cara. E defeitos, já é bem sabido, quase sempre prevalecem às qualidades. Quase sempre. Quando a gente se apaixona, quando a gente tem esse sentimento de querer largar o mundo para poder ficar horas olhando nos olhos daquela pessoa... Ah, a gente só vê o lado bom daquele(a) que queremos ver toda hora. Sentimentos, vocês são ilusionistas de primeira. São mágicos que conseguem, em um estalar de dedos, transformar as imperfeições em "imperfeições" sem o prefixo de negação.

Mas voltando ao nosso diálogo, você não me conheceu quando nos apresentaram. Você me viu. E só. Naquele dia, você se apaixonou por que o meu superficial o pareceu tão minucioso, tão profundo, tão completo. E não era, apesar de parecer ser. Não era porque o contorno do meu corpo se encaixava ao seu que eu era aquela com a qual você sempre sonhou e nem porque eu insistia em opinar em tudo que seríamos o casal perfeito de ativistas. Você sempre quis ser um, não é?

Sim, eu podia ser tudo aquilo que você imaginou. Você viu meu um por cento e completou com a imaginação os outros noventa e nove. E, de fato, por mínimas as chances, dos outros 99, 98 poderiam ser de fato o restante de mim que você não conhecia direito. Não. Não era. Eu só era aquele um por cento, eu só sou ele. O resto é defeito. Defeito por excesso. Só que você não sabia disso.

Você não sabia que minha carência era insuportável. Você não sabia que minhas opiniões erradas poderiam ser fortes ao ponto de eu não mudá-las até mostrarem o contrário. Eu só acreditava quando me mostravam a verdade. Eu sempre era Tomé até Jesus aparecer à minha frente. Você não sabia quão cabeça dura eu era, nem quão desorganizada eu era, nem que eu chegava a ser chata por querer respostas instantâneas para tudo, até para aquilo que nunca, na história da humanidade, teve resposta. Mesmo não sabendo, você se apaixonou. Droga de paixão. 

Todavia um dia você me conheceu. E, em outro dia, me viu chorando no encontro de duas paredes e um chão, em um dia em que estava em guerra comigo mesma, que me sentia um lixo. Viu que eu não era forte. Descobriu que o motivo do meu choro era aquela sensação de incapacidade por eu nunca conseguir me livrar daqueles defeitos que eu bem conhecia por ter 29 anos de convivência comigo mesma. Eu praticamente joguei na sua cara cada uma das minhas falhas. E eu gritava com você, por mais que você estivesse a centímetros do meu rosto. Perguntava com todas as forças das minhas cordas vocais: "Como você pôde se apaixonar por mim? Eu sou um monstro, eu não mereço. Eu não posso ficar com você, eu não posso viver uma mentira, eu não posso."

E você permaneceu ali. Ao meu lado. Naquela noite em que completávamos nossos 5 anos de casamento. Naquele momento, eu me dei conta de que a paixão havia acabado e se esqueceram de me avisar. Você me beijou a testa, não bem um beijo. Apenas encostou e repousou os lábios ali. Nós nunca havíamos brigado antes, exceto pelas suas cuecas deixadas no chão do quarto e pelas minha mania de querer sempre tudo com exata pontualidade. Eu não queria brigar. Eu não gritei para brigar. Foi só um desabafo.

Você sorriu. E só. Olhando-me quase de um jeito que fez com que minha alma se concentrasse só nas minhas pupilas. "Eu sei bem quem você é" - você disse baixinho, tentando me acalmar - "e você não é nenhum monstro. Na verdade, ser cabeça dura não a torna um monstro. Não querer mudar o mundo não a torna menor do que Mandela ou Gandhi. Ter defeitos não faz de você menos humana. E eu gosto de você, mesmo com todos esses defeitos e você é digna de mim porque você me faz sorrir mesmo com todos eles."

Sim, a paixão havia acabado. Ele sabia de todos os meus calcanhares de Aquiles e de todas as minhas falhas. De todos os pedaços que em mim faltavam para a minha redenção. Eu não era mais um por cento para ele, eu era 100, eu era tudo aquilo que eu achei que em mais de dez anos ele nunca ficou sabendo. A paixão deu seu completo espaço ao amor. Ela havia acabado, mas mesmo assim aquele para o qual eu disse "sim" no altar permanecia comigo. Descobri que ele sabia de mim como talvez nem eu mesma nunca soube. E ele aprendeu a aceitar o meu jeito com o tempo. Ele viu que mesmo os outros noventa e nove por cento idealizados não serem minha realidade, valia a pena estar ao meu lado por aquele um restante cheio de lados bons.

E um dos meus lados bons era ele. Eu também me apaixonei, mas com o tempo comecei a ver quão irritante era o fato de ele sempre estar atrasado. E era "insuportável" o fato de ele odiar falar sobre sentimentos. Mesmo assim eu soube amá-lo como ele me amava. E saber amar... Essa talvez seja a melhor parte de mim. E faz o um por cento valer a pena.

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